quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Quando Ele Olha...



— O que você pensa que está fazendo?! — Flora entrou furiosamente no quarto de sua irmã.
         Anastácia que se encontrava de frente para sua penteadeira não movera sequer um músculo em direção a sua gêmea. Ela se cansara de ser a irmã boazinha, a pobre e coitada Anastácia que abaixava a cabeça aos caprichos de sua irmã. Sempre fora assim, desde o princípio. Se Flora queria suas bonecas, ela as tinha. Se Flora queria seus vestidos, ela os pegava.
         Nada nunca fora verdadeiramente seu. Exclusivamente seu. Tudo sempre fora daquela versão mimada e sem coração de si mesma. Daquele monstro que tinha o rosto exatamente igual ao seu. Mas, Anastácia havia decidido nunca mais se curvar às vontades da sua irmã.
         Com a coluna ereta na mais bela pose de elegância que seu berço lhe exigia, Anastácia girou seu corpo juntamente com seu banquinho para que pudesse ficar frente a frente com sua cópia vil.
— Sinto muito, minha irmã... — pausou propositalmente. — No entanto, não compreendo ao que se refere.
— Ora sua desvirtuada! Não ouse se fazer de ingênua. Não sou tola, eu percebi suas insinuações para com o Sr. Fernando.
— Ah! É mesmo? — indagou de forma jocosa. — Eu estava me insinuando? E o que exatamente eu fiz? Vesti-me bem? Enfeitei-me? Pintei-me, também? O que mais?
         Flora, tomada pela surpresa de ver sua irmã a confrontando, demorou alguns segundos para que pudesse formular qualquer resposta.
— Minha nossa...! Finalmente você está se revelando não é mesmo? Mostrando a víbora que é!
— Agora eu quem sou a víbora?! Que eu saiba, foi a mim que o Sr. Fernando viu cavalgando na fazenda de nossa tia. Que eu saiba, foi por mim que ele se encantou e desejou cortejar! Mas você... Você tinha que ser esse monstro repugnante e possuído de ciúmes. Você o enganou!
         Flora tinha agora os olhos tingidos de um brilho raivoso e sádico. Seu sorriso era o exemplo de sua personalidade obscura. Duas irmãs quase idênticas fisicamente, porém, completamente díspares quanto suas almas.
— Minha querida irmã, se eu fosse tal monstro que você me acusa ser, como eu teria sido capaz de atrair Fernando para mim? — Flora sabia exatamente como destilar seu veneno, sempre soubera. — Não... Eu acho que ele me desejou até mais do que a ti. Porque convenhamos, querida, entre nós duas não há comparação.
— Acredita mesmo nisso? Pois, não foi o que  pareceu alguns minutos atrás quando invadiu meu quarto soltando fogo pelas ventas, acusando-me de seduzi-lo. Você parecia estar tão assustada quanto furiosa. Acho que nossos breves reencontros foram o suficiente para que Fernando percebesse o que acontecera e do que você é capaz.
— Ele é meu! — Flora gritou com todas as forças. — MEU! Ele pode ter se encantado por ti na fazenda de nossa tia, mas fui eu quem o fascinou quando ele veio a cidade. Foi comigo que ele se encontrou durante todo esse tempo.
— Você está certa, foi contigo que ele se encontrou. Foi em seu nome que ele procurou nosso pai, contudo, isso apenas aconteceu porque infelizmente compartilhamos o mesmo rosto. Do contrário, ele nunca teria se aproximado de um ser nojento como você.
         Dor e ardência.
         Anastácia pousou sua mão sobre sua bochecha. O tapa de Flora queimara como fogo em seu rosto. Ela havia conseguido desestabilizar sua irmã, finalmente. Se não estivesse fervendo de raiva teria sorrido. Flora sempre fora controlada demais, fria como o inverno. E bem ali, naquela tarde, ela tinha conseguido destruir a parede de gelo de sua gêmea. Mas ela não deixaria barato.
         Com toda sua graciosidade, Anastácia levantou-se para que pudesse encarar sua cópia na mesma altura, sem receios. Antes que Flora pudesse prever o que viria a seguir, acertou-lhe o rosto com toda força que conseguira concentrar em sua palma. Tanto fora sua vontade de revidar que acabou derrubando sua irmã contra a porta.

— Antes que saia do meu quarto, só irei te contar um pequeno segredo — Anastácia estava radiante, não apenas enfrentara sua irmã, como também a derrotara — Quando Fernando olha no fundo dos seus olhos azuis é o castanho dos meus que ele deseja encontrar.  

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Batida Do Desamor



  O rádio estava ligado em uma estação qualquer. Uma dessas músicas pop preenchia o ambiente no volume mais baixo. Era apenas mais um desses lixos sobre casais apaixonados, alguma besteira sobre amor, estrelas e, pelo que parecia, diamantes.
            Como sempre, a mídia e os famosos iludindo as pessoas normais com contos de fadas e redenções medíocres. Nada daquilo era verdade. Nada daquilo ocorria no mundo real. O amor é uma mentira comercializada, sempre fora. Apenas os tolos se deixam enganar.
            O que mais irritava Marie, porém, não era a canção em si, mas o fato de que até o dia anterior ela fazia parte de toda aquela farsa. Uma idiota como todos os outros que acreditava na existência do amor eterno.
              Eterno? Que grande estupidez!
         Essa talvez fosse a maior piada de mau gosto de todos os tempos. Eterno apenas o sofrimento, a dor, a angústia e a desilusão. Provara o suficiente desse amargor para defender essa afirmativa. Bastou um ano de casamento para que a sua história perfeita ruísse como um castelo de cartas sob os caprichos do vento.
               Patético.
          Como pudera ser tão ingênua? Ele parecia tão certo... Ou melhor, ELES pareciam tão certos juntos, pura obra do destino. Ironicamente, agora, essa obra parecia a mais torturante das criações.
            Marie não conseguia compreender como as coisas chegaram àquele extremo; como seu marido perfeito havia se tornado tão frio e distante, pior do que isso, tão desprezivelmente...
        Uma de suas mãos trêmulas soltou o volante rapidamente para ajustar o aquecedor. Ela deveria estar enlouquecendo. Aquela era uma das noites mais frias e úmidas de todo o inverno e mesmo assim seu carro parecia uma estufa viva pronta para sufoca-la até a morte.
            Malditos sentimentos! Maldita dor que persistia em afundar suas abomináveis garras em seu peito!
          Todas as noites em claro a espera de seu marido, todas as brigas, os gritos contidos, as mágoas engolidas... Simplesmente tudo o que a atormentava durante todos os últimos meses, agora vertiam de seus olhos que aparentavam ser duas descontroladas cachoeiras do que qualquer outra coisa.
            Sua mão esquerda esfregou suas maçãs do rosto tentando, sem sucesso, secá-las. Aquela porcaria de música estava em seu repetitivo refrão sobre diamantes e estrelas. Se havia alguma relação entre diamantes e o amor eram as lágrimas da dor dos amantes, nada além disso. Talvez essa fosse a grande e única verdade absoluta.
            A raiva e o desgosto consumiam Marie impiedosamente. Ela era uma covarde. Deveria ter permanecido em casa e tê-lo enfrentado, jogado tudo o que guardava dentro de si sobre ele sem medo ou remorso. Deveria tê-lo feito sentir tudo o que ela passou por culpa dele, fazê-lo sofrer na mesma intensidade. Mas ela era fraca, nunca conseguiria concluir um plano parecido. Estava fadada a ser a sofredora do relacionamento.
            Ao retornar ao seu lugar no volante, sua mão fria transmitia uma leveza quase estranha. Ela sabia muito bem do que se tratava. Sua amada aliança não mais se encontrava ali entre seus dedos. Aquele objeto que um dia fora a mais bela promessa de um futuro se transformou nas piores correntes já criadas. Mas, ainda assim, fazia-lhe tanta falta...
            A música havia acabado, porém, nenhuma outra se introduziu. O rádio não poderia ter quebrado. Com o cenho franzido, Marie tentou reaviva-lo, dando-lhe leves pancadas. Nada acontecera, apenas o silêncio profundo da noite em meio a uma estrada escura que parecia infinita. Estava literalmente sozinha, acompanhada apenas de seus pensamentos tempestivos.
            Talvez fosse melhor assim, livre das bobagens que aquelas caixinhas de som transmitiam. Ela tinha que se liber... Mas o que era aquil...
            Marie não teve tempo de processar completamente o que estava acontecendo, tudo o que viu foi uma luz intensa, quase capaz de cegá-la. E então um estremecimento estranho percorreu todo seu corpo e o que havia ao seu redor.
               E... Meu Deus! Quanta dor!
         Nada mais fazia sentido. Ela estava num turbilhão de sensações. Agulhas entravam por todos os lados do seu corpo e se arrastavam pelo mesmo, arranhando sua alma. O mundo parecia ter perdido seu eixo, girando descontroladamente enquanto, ao mesmo tempo, era esticado e comprimido. A dor era tão grande...
    Um zumbido irritante pulsava abafadamente. O que era aquilo?
  Marie começou a se desligar do que quer que estivesse acontecendo, seus tímpanos pareciam ter sido moídos e uma pressão insuportável pairava sobre sua cabeça. Seus olhos não conseguiam abrir, seu corpo parecia ter sumido se não fosse por aquela estranha sensação. Era algo molhado escorrendo em si, não sabia a origem. Parecia que haviam aberto uma torneira.
             Seu estômago deu sinal de vida como se estivesse sendo arrancado junto com as vísceras; seu peito ardia como uma lareira deveria fazer em um chalé invernal. Pontos brancos e pretos começaram a se misturar atrás das suas pálpebras. Mas a escuridão começou a vencer. A sensação de flutuar surgiu.

              Então, aquele era o seu fi...?

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Jardim Quase Secreto


         Se há uma coisa que nunca esqueço nessa vida e nunca serei capaz de fazê-lo é de um jardim quase secreto que encontrei na minha infância.  
Havia uma pequena trilha de terra que todos sabiam existir por trás daquelas árvores longilíneas, era estreita e avermelhada como pontas de labaredas. A sua volta apenas grama de todos os tamanhos e tons de verde possíveis. Tudo muito simples.
         Mas, o que importava e que realmente possuía valor naquele cenário era o pequeno tesouro esquecido ao final daquela mesma trilha. Lá havia um jardim magnífico com flores de todos os tipos, de todos os cheiros e cores. Havia, também, bem no centro daquela maravilha, um chafariz de cristal. Era um coração ornamentado em nuvens. Dali jorrava uma cachoeira da água mais transparente que alguém pudesse ter visto.
              Eu amava aquele lugar.
            O jardim parecia ter vida própria, não precisava de nada nem ninguém. Existia por si só naquele pedaço de chão abandonado. As flores pareciam nunca morrer e sempre tinham novos botões surgindo para qualquer lado que se olhasse.
          Lembro-me de que havia um pequeno banco de madeira. Era a única coisa que aparentava ser velha; sua tinta já se desbotava em vários tons e descascava em meio a diversas rachaduras. Nesse mesmo banco, tinha uma estátua, a mais bonita que vi em minha vida. E por mais que fosse branca da cabeça aos pés, sempre que eu a observava, via uma moça com maças do rosto rubras, cabelos escuros sobre os ombros e um vestido azul.
              Nenhum sapato.
            Ela vivia descalça e eu acreditava que isso era a maneira que ela havia encontrado para viver eternamente conectada com aquelas flores. Talvez fosse tolice e pura imaginação infantil, mas aqueles olhos castanhos nunca estiveram mortos. Aqueles olhos só possuíam vida. Ela era a  alma daquele jardim. E eu juro...
                Ela sorria.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

My Angel, Ma Fille



         Menina.
         Menina!
         Eu me lembro muito bem. Era uma menina. Eu já tinha grande expectativa de que fosse mesmo, mas ao receber a notícia era como se tudo passasse a ser real, como se antes fosse apenas uma possibilidade e, então, uma certeza. Era uma menina.
         Minha menina.
         O mundo não poderia ser mais verdadeiro e surreal do que naquele momento, porém, ele o conseguiu ser. Eu não tinha como controlar minhas emoções, tampouco meus pensamentos, quem dera minhas próprias mãos.
         Minha menina era a concretização dos meus mais profundos sonhos, era a realização dos meus desejos mais puros e latentes. Não havia nada que pudesse superar tamanha felicidade; jamais alguém poderia dizer que já havia me visto daquela maneira, porque seria mentira. Aquilo era o ápice do que meu espírito poderia chegar. Nada seria capaz de ultrapassar minha alegria, pois não existia nada mais belo do que aquele momento. Apenas um momento.
         Mas era o meu momento.
         E tão rápido quanto veio se foi. Todas as futuras possibilidades ruíram como um castelo de cartas diante do vento. Uma por uma sendo tiradas de suas posições até não restar mais nada além do pobre e tolo sonhador que ousou usá-las. Não sobrou-me nada, senão a mim mesmo.
         Foi assim que a minha menina me deixou. Levada pelas mãos do Destino sem que eu pudesse lutar. Um anjo de cachos dourados que chegou e partiu, como os fios de ouro naquela velha canção de outono da minha infância. Desde então, minha vida é um eterno inverno. Sem recomeço, nem fim.
E, todas as noites, eu sou capaz de ver pela janela do meu quarto minha garotinha de costas, partindo com seus cabelos dourados sobre a neve, com o gelo sob seus pés descalços. Como se todos os dias, fossem aquele dia; como se todas as mortes fossem dela.  Talvez sejam mesmo. Talvez ela seja um anjo. Um anjo da morte.
Meu anjo.
É o que importa.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

La Douceur de Mort


A vida é curta enquanto longa e longa enquanto curta. Existe do inexplicável, cresce na natureza a partir de si e do mundo. Ela é tudo o que há de melhor e pior. Tudo junto. Tudo separado.
Junto. Separado.
E também há a morte. Calma e silenciosa. Espreitando as vidas que por ela esbarram, ansiando-as com carinho e loucura. Eu provei da sede dela e nunca fui capaz de esquecer o travo de sua essência. Amargo como fel e ainda assim doce como o mel. A morte é uma porta ou, melhor, uma passagem sem retorno. Um caminho lindo e, diferentemente da vida, nem um pouco tortuoso, porém, sombrio.
 Eu já encontrei essa estrada, só que ela não me quis. Pelo contrário, levou a única coisa de boa que me restava nesta vida. Como uma miragem onírica, ela pegou o que restava para ser pego. E eu fiquei para trás, aos pedaços, como um espelho recém-quebrado e com a sombra de um reflexo passado.
Naquele dia, eu soube que a morte era tão boa quanto ruim.
Agridoce.
Triste e Feliz.
Porque a morte só é dolorosa para quem permanece vivendo.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

The Unspoken Goodbye...




Eu estava sentada na beirada da cadeira, com o corpo curvado sobre a mesa da sala de jantar. Meus olhos estavam inchados e vermelhos, e eu não precisava me olhar no espelho para confirmar essa dedução. As marcas secas e irregulares no papel que eu segurava firmemente entre meus dedos confirmavam as lágrimas que já não mais se encontravam escorrendo por minhas bochechas.
Desviei meus olhos da causa dessa dor insuportável que se alastrava pelo meu corpo, mas que parecia adorar o efeito que me causava sobre o peito. Eu não queria ter que partir. Eu não queria ter que deixa-lo...
Mas ele era a razão disso tudo. Ele era o culpado.
Passei as mãos trêmulas pelos meus cachos tentando prolongar o inevitável, tentando a todo custo arranjar mais tempo. Não sabia ao certo se seria para acabar vendo-o chegar em casa antes de partir ou se para que quando o visse permanecesse ali.
Talvez fossem as duas coisas. Talvez não.
A única coisa da qual eu tinha certeza era que se eu fitasse aquelas orbes verdes mais uma vez, eu não conseguiria prosseguir com os meus planos. Mais uma vez eu seria uma vítima da força que ele exercia sobre mim. E dessa vez, infelizmente, eu não podia falhar; não quando envolvia algo além de nós dois. Dessa vez não poderia ter volta.
Era por isso que eu estava ali. Despedindo-me de cada cômodo, de cada lembrança, de cada sonho, mágoa e arrependimento. A única coisa que eu estava deixando para trás era aquele pedaço de papel amaçado, que apertava contra o peito. Aquela seria minha despedida. Aquele seria meu único adeus.
Já em pé, e com as malas feitas, observava algumas de nossas fotos espalhadas pela sala de estar. Uma em questão era a que mais atraia minha atenção. O dia em que ele havia se declarado para mim. O dia em que havia me iludido, afirmado que eu era importante. Hoje, acho que nunca fui. Mas naquela adorável época eu não sabia que o amor vestia máscaras.
Tragicamente, esse foi o único tipo de amor que eu conheci.
Apesar da raiva que se acumulava com as decepções, a gravidade continuava ali... Dentro de mim, fora de mim, sugando de mim. Era a grande razão de eu não enfrenta-lo cara a cara, para dizer todas as angústias que ele me proporcionou; para dizer que eu vi as marcas de batom que mancharam suas roupas em todas as noites que chegava tarde ou os olhares e sorrisos zombeteiros que seus amigos compartilhavam, como de quem guarda um segredo de um tolo, e nesse caso, eu desempenhava esse papel. No entanto, apesar de tudo, se eu o visse novamente, eu pereceria sob a sua gravidade e novamente seria arrastada para os seus braços, para suas mentiras.
Só que eu não era mais capaz de suportar.
Puxei a aliança que há muito tempo deveria ter sido retirada do meu anelar. Ela não brilhava como antigamente. Assim como eu não era mais feliz. Depositei-a sobre a cômoda próxima à porta, apoiei minha mão sobre a maçaneta e a girei.
Aquele era o fim de tudo. Aquele era o fim do meu casamento e também o meu fim.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Palavras Soltas No Alçapão


Quando paro para pensar no que foram essas paredes, percebo que não conheço as histórias por trás de tais camadas de tinta descascada, como eu imaginava. Por mais que eu tenha, descalço, corrido os pés por essas madeiras gélidas, umedecidas pelos invernos, eu não sei o que de fato se passou. Por mais que eu tenha por essas escadas, escorregado corrimão abaixo, eu não vivi as diversas vidas que por aqui morreram.
Eu conheço o cheiro ocre dessas cortinas opacas, que balançam ao vento de imemoráveis outonos. Eu sinto a aspereza das rachaduras do teto nas pontas dos meus dedos. Eu vejo os trincados de outras famílias nas janelas. E ainda assim, eu  não consigo escutar as risadas da minha infância.
Os desconhecidos se acumulam pelos cômodos, enquanto que eu me desfaço aos poucos em momentos diluídos pelo tempo. Escorregando cada vez um pouquinho mais para o inevitável esquecimento.
E o que foram aqueles maravilhosos verões que aqueceram meu crescimento, e aqueles piqueniques primaveris, senão instantes inconstantes de ingênua felicidade. Triste equívoco que logra amargamente a existência de um tolo.
Nada mais me resta, além dessas palavras de tormenta que teimam em se amontoar pelos cantos e recantos. E mesmo que eu não queira dialogar com as diabruras de uma mente envelhecida, elas continuam bem ali, estremecendo os lustres das minhas ilusões passadas. Atiçando-me, enlouquecendo-me.
Palavras soltas no alçapão.

Devotion