quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Batida Do Desamor



  O rádio estava ligado em uma estação qualquer. Uma dessas músicas pop preenchia o ambiente no volume mais baixo. Era apenas mais um desses lixos sobre casais apaixonados, alguma besteira sobre amor, estrelas e, pelo que parecia, diamantes.
            Como sempre, a mídia e os famosos iludindo as pessoas normais com contos de fadas e redenções medíocres. Nada daquilo era verdade. Nada daquilo ocorria no mundo real. O amor é uma mentira comercializada, sempre fora. Apenas os tolos se deixam enganar.
            O que mais irritava Marie, porém, não era a canção em si, mas o fato de que até o dia anterior ela fazia parte de toda aquela farsa. Uma idiota como todos os outros que acreditava na existência do amor eterno.
              Eterno? Que grande estupidez!
         Essa talvez fosse a maior piada de mau gosto de todos os tempos. Eterno apenas o sofrimento, a dor, a angústia e a desilusão. Provara o suficiente desse amargor para defender essa afirmativa. Bastou um ano de casamento para que a sua história perfeita ruísse como um castelo de cartas sob os caprichos do vento.
               Patético.
          Como pudera ser tão ingênua? Ele parecia tão certo... Ou melhor, ELES pareciam tão certos juntos, pura obra do destino. Ironicamente, agora, essa obra parecia a mais torturante das criações.
            Marie não conseguia compreender como as coisas chegaram àquele extremo; como seu marido perfeito havia se tornado tão frio e distante, pior do que isso, tão desprezivelmente...
        Uma de suas mãos trêmulas soltou o volante rapidamente para ajustar o aquecedor. Ela deveria estar enlouquecendo. Aquela era uma das noites mais frias e úmidas de todo o inverno e mesmo assim seu carro parecia uma estufa viva pronta para sufoca-la até a morte.
            Malditos sentimentos! Maldita dor que persistia em afundar suas abomináveis garras em seu peito!
          Todas as noites em claro a espera de seu marido, todas as brigas, os gritos contidos, as mágoas engolidas... Simplesmente tudo o que a atormentava durante todos os últimos meses, agora vertiam de seus olhos que aparentavam ser duas descontroladas cachoeiras do que qualquer outra coisa.
            Sua mão esquerda esfregou suas maçãs do rosto tentando, sem sucesso, secá-las. Aquela porcaria de música estava em seu repetitivo refrão sobre diamantes e estrelas. Se havia alguma relação entre diamantes e o amor eram as lágrimas da dor dos amantes, nada além disso. Talvez essa fosse a grande e única verdade absoluta.
            A raiva e o desgosto consumiam Marie impiedosamente. Ela era uma covarde. Deveria ter permanecido em casa e tê-lo enfrentado, jogado tudo o que guardava dentro de si sobre ele sem medo ou remorso. Deveria tê-lo feito sentir tudo o que ela passou por culpa dele, fazê-lo sofrer na mesma intensidade. Mas ela era fraca, nunca conseguiria concluir um plano parecido. Estava fadada a ser a sofredora do relacionamento.
            Ao retornar ao seu lugar no volante, sua mão fria transmitia uma leveza quase estranha. Ela sabia muito bem do que se tratava. Sua amada aliança não mais se encontrava ali entre seus dedos. Aquele objeto que um dia fora a mais bela promessa de um futuro se transformou nas piores correntes já criadas. Mas, ainda assim, fazia-lhe tanta falta...
            A música havia acabado, porém, nenhuma outra se introduziu. O rádio não poderia ter quebrado. Com o cenho franzido, Marie tentou reaviva-lo, dando-lhe leves pancadas. Nada acontecera, apenas o silêncio profundo da noite em meio a uma estrada escura que parecia infinita. Estava literalmente sozinha, acompanhada apenas de seus pensamentos tempestivos.
            Talvez fosse melhor assim, livre das bobagens que aquelas caixinhas de som transmitiam. Ela tinha que se liber... Mas o que era aquil...
            Marie não teve tempo de processar completamente o que estava acontecendo, tudo o que viu foi uma luz intensa, quase capaz de cegá-la. E então um estremecimento estranho percorreu todo seu corpo e o que havia ao seu redor.
               E... Meu Deus! Quanta dor!
         Nada mais fazia sentido. Ela estava num turbilhão de sensações. Agulhas entravam por todos os lados do seu corpo e se arrastavam pelo mesmo, arranhando sua alma. O mundo parecia ter perdido seu eixo, girando descontroladamente enquanto, ao mesmo tempo, era esticado e comprimido. A dor era tão grande...
    Um zumbido irritante pulsava abafadamente. O que era aquilo?
  Marie começou a se desligar do que quer que estivesse acontecendo, seus tímpanos pareciam ter sido moídos e uma pressão insuportável pairava sobre sua cabeça. Seus olhos não conseguiam abrir, seu corpo parecia ter sumido se não fosse por aquela estranha sensação. Era algo molhado escorrendo em si, não sabia a origem. Parecia que haviam aberto uma torneira.
             Seu estômago deu sinal de vida como se estivesse sendo arrancado junto com as vísceras; seu peito ardia como uma lareira deveria fazer em um chalé invernal. Pontos brancos e pretos começaram a se misturar atrás das suas pálpebras. Mas a escuridão começou a vencer. A sensação de flutuar surgiu.

              Então, aquele era o seu fi...?

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Jardim Quase Secreto


         Se há uma coisa que nunca esqueço nessa vida e nunca serei capaz de fazê-lo é de um jardim quase secreto que encontrei na minha infância.  
Havia uma pequena trilha de terra que todos sabiam existir por trás daquelas árvores longilíneas, era estreita e avermelhada como pontas de labaredas. A sua volta apenas grama de todos os tamanhos e tons de verde possíveis. Tudo muito simples.
         Mas, o que importava e que realmente possuía valor naquele cenário era o pequeno tesouro esquecido ao final daquela mesma trilha. Lá havia um jardim magnífico com flores de todos os tipos, de todos os cheiros e cores. Havia, também, bem no centro daquela maravilha, um chafariz de cristal. Era um coração ornamentado em nuvens. Dali jorrava uma cachoeira da água mais transparente que alguém pudesse ter visto.
              Eu amava aquele lugar.
            O jardim parecia ter vida própria, não precisava de nada nem ninguém. Existia por si só naquele pedaço de chão abandonado. As flores pareciam nunca morrer e sempre tinham novos botões surgindo para qualquer lado que se olhasse.
          Lembro-me de que havia um pequeno banco de madeira. Era a única coisa que aparentava ser velha; sua tinta já se desbotava em vários tons e descascava em meio a diversas rachaduras. Nesse mesmo banco, tinha uma estátua, a mais bonita que vi em minha vida. E por mais que fosse branca da cabeça aos pés, sempre que eu a observava, via uma moça com maças do rosto rubras, cabelos escuros sobre os ombros e um vestido azul.
              Nenhum sapato.
            Ela vivia descalça e eu acreditava que isso era a maneira que ela havia encontrado para viver eternamente conectada com aquelas flores. Talvez fosse tolice e pura imaginação infantil, mas aqueles olhos castanhos nunca estiveram mortos. Aqueles olhos só possuíam vida. Ela era a  alma daquele jardim. E eu juro...
                Ela sorria.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

My Angel, Ma Fille



         Menina.
         Menina!
         Eu me lembro muito bem. Era uma menina. Eu já tinha grande expectativa de que fosse mesmo, mas ao receber a notícia era como se tudo passasse a ser real, como se antes fosse apenas uma possibilidade e, então, uma certeza. Era uma menina.
         Minha menina.
         O mundo não poderia ser mais verdadeiro e surreal do que naquele momento, porém, ele o conseguiu ser. Eu não tinha como controlar minhas emoções, tampouco meus pensamentos, quem dera minhas próprias mãos.
         Minha menina era a concretização dos meus mais profundos sonhos, era a realização dos meus desejos mais puros e latentes. Não havia nada que pudesse superar tamanha felicidade; jamais alguém poderia dizer que já havia me visto daquela maneira, porque seria mentira. Aquilo era o ápice do que meu espírito poderia chegar. Nada seria capaz de ultrapassar minha alegria, pois não existia nada mais belo do que aquele momento. Apenas um momento.
         Mas era o meu momento.
         E tão rápido quanto veio se foi. Todas as futuras possibilidades ruíram como um castelo de cartas diante do vento. Uma por uma sendo tiradas de suas posições até não restar mais nada além do pobre e tolo sonhador que ousou usá-las. Não sobrou-me nada, senão a mim mesmo.
         Foi assim que a minha menina me deixou. Levada pelas mãos do Destino sem que eu pudesse lutar. Um anjo de cachos dourados que chegou e partiu, como os fios de ouro naquela velha canção de outono da minha infância. Desde então, minha vida é um eterno inverno. Sem recomeço, nem fim.
E, todas as noites, eu sou capaz de ver pela janela do meu quarto minha garotinha de costas, partindo com seus cabelos dourados sobre a neve, com o gelo sob seus pés descalços. Como se todos os dias, fossem aquele dia; como se todas as mortes fossem dela.  Talvez sejam mesmo. Talvez ela seja um anjo. Um anjo da morte.
Meu anjo.
É o que importa.

Devotion